terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Ser versus fazer.

Por Wagner Siqueira*. Para os existencialistas a dissonância SER X TER seria a marca definitiva do homem moderno em busca do auto-encontro e da felicidade. Mal sabiam que o mundo das organizações logo suscitaria, nestes primeiros anos do Século XXI , uma nova disjuntiva SER X FAZER , que, apesar de ser uma variação em torno do mesmo tema, apresentar-se-ia de forma bem mais dominante, profunda e penetrante nos corações e mentes daqueles que se dedicam ao trabalho no universo das corporações. O valor pessoal de alguém não deriva quase que exclusivamente das realizações constantes de seu curriculum vitae, mas de todas as dimensões de sua existência, que o tornam um indivíduo único e singular. A cultura das organizações, no entanto, nos impele à superestimação do valor do indivíduo pelo que ele faz e não valoriza de forma adequada quem ele é. As pessoas são muito maiores do que os seus trabalhos. Mas as organizações se recusam a compreender e a aceitar tal evidência axiomática. Sacrificamos nossas famílias e as comunidades sociais por privilegiar desmesuradamente o trabalho. Isto é ótimo para a organização, mas péssimo para a pessoa. Permitimos que códigos de ética e de moral sejam amiúde violados para satisfazer as exigências de uma organização inserida num mundo de competição desenfreada. Paulatinamente, no entanto, assimilamos tais valores como se fossem nossos e passamos de forma inconsciente a compartilhar como indivíduos das mesmas atitudes e comportamentos. Ao relativizarmos a ética empresarial da ética individual, fraturamos a consistência do código de conduta pelo qual pautamos as nossas vidas. O indivíduo como pessoa que aja moralmente inspira-se no que Max Weber chamou de ética da convicção. Já na empresa, passa a se referenciar pela ética de resultados. São, evidentemente, duas formas incompatíveis entre si de julgar o que é bom e o que é mau: ou se adota uma ou se adota outra. Por ética de convicção se entende a que julga e avalia as ações em seus precedentes, pelo que lhe está subjacente, ou seja, tudo o que é anterior à própria ação, como os princípios, as regras e os códigos morais. Por exemplo: os Dez Mandamentos divinos. As ações são boas ou más pelas correspondências que guardem com esses referenciais básicos de conduta pessoal. Mas é também possível julgar uma ação com base não no que a precede, mas pelos seus resultados. Assim, a ética de convicção e a de resultados são dois juízos inteiramente distintos e, muitas vezes, contraditórios sobre a mesma ação empreendida ou a ser implementada. Ela pode ser má em relação aos princípios e boa em relação aos resultados. E vice-versa. Sobre que critério deve agir o executivo? Geralmente, quando se fala de ações empresariais imorais ou aéticas há a inspiração de que os fins justificam os meios. O importante são os resultados, pouco importando os princípios feridos para a sua consecução. É claro que tais atitudes não são declaradas, mas praticadas. O executivo que obtém grandes resultados nos balanços das organizações costuma dar muito pouco valor ou fidelidade à ética de convicção, o que o faz perder pouco a pouco a sua própria identidade como pessoa para assimilar a da empresa. Muitas vezes até por resistir à própria despersonalização, muitos passam a conviver no cotidiano com o dilema insuportável do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, em O Médico e o Monstro. Nem sempre as qualidades do bom trabalho são as mesmas do bom caráter. Nem sempre um executivo de sucesso pode oferecer aos filhos o seu comportamento no trabalho como paradigma de como eles devam se conduzir eticamente em suas vidas. As qualidades do bom trabalho dos pais não são as do bom caráter que se deseja ensinar aos filhos. E como comumente hesita em transmitir esse legado moral pervertido, assiste-se à fratura da identidade ética do indivíduo como pessoa em sua família e como executivo em sua organização. A essência do ponto de vista moral das organizações exageradamente competitivas dos tempos presentes reside numa forte aversão às tentativas de negar aos seres humanos seus direitos à soberania moral. Elas podem ser acusadas dessa violação pela própria maneira como buscam doutrinar seus colaboradores e liquidar as organizações concorrentes, vistas em geral como inimigas. Como facções, os colaboradores de organizações concorrentes tendem a estigmatizarem-se reciprocamente. Guardadas as devidas proporções, apenas como figura de retórica por analogia, os colaboradores de organizações rivais comportam-se como habitantes de áreas faveladas das grandes cidades brasileiras em que as facções criminosas impõem rótulos aos moradores do comando prevalecente da comunidade a que pertencem, uns em relação aos outros, desenvolvendo-se preconceitos, restrições, aversões e estigmas. Imagine-se, por exemplo, o constrangimento de alguém, pertencendo a uma determinada indústria de refrigerantes ou de cervejas, curtindo numa roda de amigos saborear as delícias de beber os produtos da concorrente. Como se sente e como é percebido pelos demais? A especificidade da área de atuação da organização, a natureza de sua atividade econômica, as características do grupo que a integra e outros elementos psicossociais influenciam, mas não determinam a vida das pessoas. Os indivíduos são mais concretos do que as organizações às quais pertencem. A liberdade de pensamento é primordial à natureza do ser humano. Apesar desses aspectos perecerem evidentes, é necessário coragem e muita convicção para expressá-los no mundo globalizado que hoje vivemos, um mundo que enfrenta a angústia do pensamento único sustentado por ciências sociais comprometidas fundamentalmente com a manutenção de uma ordem mundial injusta, a serviço da aristocracia financeira. Para Kant o único comportamento humano que podemos almejar ser adotado por todos, sem contradições, é a benevolência ou a solidariedade. Este é um valor intrínseco, mesmo que não redunde em bons resultados. Agir de modo solidário significa ver cada ser humano como um fim em si mesmo e não, simplesmente, como um meio para alcançar outros fins. Somente são livres os seres humanos que conseguem verem-se reciprocamente como fins e não como meios, e agem de acordo com os seus princípios e não em função de seus temores ou paixões de uns em relação a outros, o que sempre lhes restringe a liberdade. As pessoas e suas trajetórias existenciais são importantes em quaisquer dimensões em que atuem na vida social. Assim, sempre que generalizamos sobre elas ou tentamos estandardizá-las, somos culpados por ação totalitária. Porém, não estamos conseguindo confrontar hoje esse lugar-comum da realidade da vida das organizações que, transformadas em seitas em sua ação corporativa, bombardeiam indiscriminadamente a todos com a vastidão obscura da hegemonia do pensamento único. Os indivíduos não somente têm o direito, mas a obrigação de se desenvolverem como pessoas. A vida não tem sentido se não for assim. Ninguém deve buscar nas organizações apoio emocional de que necessita para ser feliz ou para assegurar o seu equilíbrio existencial. Nem mesmo a mais evidente característica da personalidade de uma pessoa é predeterminada. Todos têm direito ao livre arbítrio de escolher o seu destino. Mas nem todos pensam e agem assim. Os grupos a que cada um pertence tentam traçar e definir o destino de seus integrantes, constrangendo a todos a fazer o que lhes parece como grupo ser o mais conveniente e adequado para os interesses do coletivo. Os membros dessas organizações não conseguem deixá-las porque a elas aderiram por livre e espontânea vontade. Passam a ser prisioneiros voluntários de uma realidade que preenche os seus vazios existenciais. As pessoas mais propensas a se enredarrem em tal situação profissional têm originalmente tantas carências como indivíduos que são naturalmente atraídos pela identificação com o grupo de trabalho e pelo preenchimento por parte da organização de suas necessidades mais sentidas. Tal identificação se efetiva por jogar no time, participar de atividades importantes, ser leal aos companheiros, ser reconhecido etc. De fato, muitas vezes tal contexto acolhedor nada mais é do que a resposta ao anseio de pertencer a algo que as ajude a suprir necessidades humanas insatisfeitas. O indivíduo passa a ser prisioneiro do estratagema que engendrou para si próprio. Talvez os verdadeiros prisioneiros, apenados nos presídios, tenham vida bem mais suave do que aqueles que trabalham na maioria de nossas organizações empresariais. Tanto na prisão como nos ambientes de trabalho você passa a maior parte de sua vida útil enclausurado em cubículos, que na empresa modernamente são chamadas de estação de trabalho. O preso tem 3 refeições completas todos os dias. Você, quando muito, tem um intervalo para almoço e tem que pagar por ele. O preso pode receber liberdade condicional por bom comportamento. Você será recompensado pelo bom desempenho com uma carga maior de trabalho. Na prisão, o encarcerado pode assistir televisão, ler jornais, tomar banho de sol. Você será demitido se fizer o mesmo. O preso pode participar de programas internos de forma voluntária. No trabalho, você não escolhe o que faz e não pode se furtar a fazê-lo. Aos presos é permitido receber parentes e amigos, às vezes até para visitas íntimas. Você na empresa tem dificuldade até de usar o telefone para ligações particulares e muitas vezes o seu correio eletrônico é censurado. Na prisão todas as despesas são pagas pelos contribuintes, sem qualquer contraprestação por parte dos presos pelos serviços que lhes são assegurados. Você paga todas as despesas para ir trabalhar e ainda são deduzidos de seu salário diferentes tributos para sustentar as despesas dos presídios. Os presos são algemados sempre que vão a algum lugar, como prestar depoimentos à Justiça. No trabalho você está sempre algemado pelas limitações impostas pelas regras e interesses dos que detêm o poder nas organizações. Na China ancestral havia o hábito de calçar permanentemente as meninas com sapatos de ferro, mantendo-os até que elas alcançassem a idade adulta. Nessa idade, os pés não podiam mais crescer, pois já passara a fase do desenvolvimento. Elas se livravam dos sapatos, mas ficavam para toda a vida com os pés atrofiados. A natureza era violentada à custa de discutíveis padrões de estética e beleza impostos pela cultura prevalecente à época. Mais brutais ainda do que aqueles chineses ancestrais, muitas organizações modernas se constituem em verdadeiras tenazes ou fôrmas no cérebro das pessoas, limitando a sua consciência e capacidade de compreender o ambiente que as cerca. A convivência cotidiana com valores distorcidos escraviza o ser humano e viola a sua natureza. Em verdade, um número crescente de organizações se constituem em sistemas totalitários empenhados em aprisionar a vida e o pensamento de seus membros numa camisa de força que os leva ao caminho de retorno à servidão, transformando-os hoje nos modernos servos da gleba, semelhantes aos do regime feudal da Idade Média. Jean Jacques Rousseau, em seu imortal Contrato Social indaga: “O homem permanece livre, mas em todos os lugares é um prisioneiro... Como esta mudança acontece? Eu não sei. O que pode torná-la legítima? Esta questão eu espero ser capaz de fornecer uma resposta”. Infelizmente, Rousseau não conseguiu equacionar esse paradoxo. Até hoje a humanidade busca a solução, sem ainda a encontrar. Ao contrário, na medida em que o ser humano mais dispõe de recursos e de facilidades inimagináveis para o seu bem-estar, paradoxalmente mais parece ficar escravizado a outros homens ou a outras circunstâncias totalitárias. Bibliografia: Seitas Organizacionais, Wagner Siqueira, Fundo de Cultura Editora, 2005, RJ. Adm. Wagner Siqueira (Presidente / CRA/RJ Nº 01-02903-7). Fonte http://cra-rj.org.br/site/cra_rj/mensagem_presidente/mens_presidente.asp

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