O mal sem abrigo: críticas ao Anticristo de Lars von Trier. 1–12–2009
por Cesar Kiraly.
Obrigo-me a fazer alguns comentários sobre o Anticristo do diretor Lars Von Trier. Na verdade tornarei as coisas um pouco mais tendenciosas para que se possa saber o que esperar dos meus comentários e depositar um sentido tendente em cada uma das minhas letras: comentarei sobre os modos pelos quais um diretor muito bom consegue fazer um filme no qual as cores, a dramaturgia e as teses são todas muito ruins. Por certo, esses comentários que faço não procuram colocar este filme na estante dos filmes ruins, mas quero dizer que essa película de Von Trier possui cores, dramaturgia e teses inferiores. Este meu juízo, e não poderia deixar de ser, é comparativo. Mas comparativo com o universo de outros filmes do mesmo diretor.
Apenas para situar o problema das cores, Dançando no Escuro é um filme outonal: as cores assumem o tom de amarelo, que se torna princípio amarelo: mostrando no esmaecimento do tom o tempo que passa sem passar. Em artes visuais este efeito é acompanhado por muita melancolia, na pintura a melancolia é tão intensa que a felicidade é sempre ambivalente, ainda mai se estamos diante de uma tela figurativa. Mas no cinema o efeito não é tão complexo, porque o princípio amarelo é representado com maestria pelo Outono natural. Nas folhas, nos cabelos idosos, existe um princípio amarelo: um tempo que passa sem passar. Nos filmes minimalistas de Von Trier (cabe dizer, o Dogma 95 não é minimalista em imagem, mas hiperbólico em regras, mesmo que essas regras pareçam divertidas, o que fornece uma falsa aparência de mínimo, quando o que existe é um excesso), o trabalho com a cor se torna bastante superior. Não porque ele habita o território um pouco mais próximo do preto e do branco (que não sem ironia constitui a dramaturgia, enquanto cores da pele), e esse território seria um pouco mais simples, mas porque ele habita o território do preto e do branco, pensar nas casas pintadas no chão de Dogville, apenas com tracejado branco sobre o solo preto, e isso o obriga a colocar as coisas em termos de composição. Ou ainda Manderley, onde o solo branco é inscrito pelo tracejado preto.
A lembrança do mapa dos Estados Unidos todo branco no fundo e tracejado em preto é bastante significativa da maturidade pictórica do diretor. Entre Dogville e Manderley, por serem filmes de minimalismo, existe um jogo pictórico entre a prevalência do preto e a inscrição do branco, e por outro lado, a disponibilidade do branco e a inscrição do preto. Este minimalismo, como qualquer minimalismo, torna a elementaridade das paixões humanas uma questão contrastante.
O Anticristo possui muitos elementos para ser um bom filme, mas não é. Se interpretássemos de um modo mais processual, poderíamos dizer que se constitui na oportunidade de retornar ao tema do outono, acrescido à quebra das elementaridades morais, mas não um outono espontâneo, e sim um outono provocado, acrescido do problema do Mal. A maturidade pictórica dos filmes anteriores é trocada por uma espécie de lambança computacional que torna a imagem do filme devedora de alguns filmes adolescentes. Alguns poderiam retorquir que Von Trier passa agora a fazer parte de uma forte genealogia de diretores que filmam nas dimensões do sonho, como Tarkovsky, o que seria comprovado por uma forte mitologia que envolve o filme, como a depressão de Von Trier e a dedicatória a Tarkovsky. Mas ainda que ele tenha se tornado um membro dessa genealogia de diretores que mobilizam o onírico, deve ser dito que Von Trier ainda não conseguiu se colocar à altura dos pares.
No que concerne ao Anticristo, nas circunstâncias da obra de Von Trier algumas indagações sobre a natureza pictórica do sonho são cabíveis. Porque muito embora ele tenha muita experiência com a natureza pictórica da experiência, talvez lhe falte alguma ardilosidade no que concerne ao trabalho pictórico com os sonhos. De nenhuma forma podemos naturalizar os sonhos, ou fazer neles alguma mitologia. Aquilo que se pode chamar de um trabalho pictórico com sonhos concerne apenas ao que se fez: em literatura, poesia etc. Esta natureza pictórica do sonho que defendemos pode mudar e se tornar algo mais próxima, ou até mesmo idêntica, ao que Von Trier defende, mas com largo prejuízo ao gosto. Por isso, cabe dizer, que os sonhos não são penumbra. Nesse sentido, representar a realidade-onírica como penumbra é uma espécie de deturpação justificável na comédia. O que, salvo melhor juízo, não é o caso. A representação do sonho na realidade “com brumas” é ainda mais risível.
Mas por que ele faz isso, ele que é um grande diretor? Porque não se deu o trabalho de perceber que a cor não é o que distingue os dois regimes (a realidade do sonho ou o sonho da vigília), mas o que os torna contíguos. Ele assim o faz para proteger as imagens da dor — nada mais habitável, no sentido vegetativo, do que uma realidade sem força onírica. Não é facultado aos grandes artistas hesitação diante da dor. Aparentemente, ao dar “amostras” do grotesco (ejaculação com sangue, mutilações e intervenções no corpo) ele nos poupa do caminho mais cruel. Este caminho mais cruel (entretanto, artisticamente superior) se dá no reconhecimento que a composição do absurdo não está no sonho, mas está no mundo, com relação ao qual o sonho está em relação de contigüidade. No mundo estão os pesadelos, e deles os sonhos participam.
No que concerne às teses, nada mais artisticamente pobre do que a saída pelo psicologismo. Uma forma de relativismo acerca do conhecimento das experiências humanas, em virtude da intensa presença da singularidade, em cuja forma mais cruel acaba por lidar com a natureza humana apenas como uma entidade regular. Von Trier, a pretexto de brincar com as teses da psicanálise e das psicologias do comportamento, colocou quase tudo na conta do psicologismo. (1) A onipotência do marido acerca das agruras da esposa. (2) O relativismo da esposa acerca das distinções entre bem e mal. (3) A forte carga de imprevisibilidade acerca dos rumos desastrosos na resposta a situações de sofrimento. Pois, pode ser dito, o que menos interessa à psicanálise é o psicologismo: (1) situações de onipotência acabam mal. (2) O relativismo acerca das distinções entre bem e mal também acabam mal. (3) Situações de sofrimento são previsíveis no que concerne aos seus rumos desastrosos. Não há motivo para se relativizar qualquer desses temas.
Responde Milton Ribeiro (2–12–2009 10:17 am)
César, meu amigo,
por favor, não pense que me tenho em alta conta e que tenha alguma pretensão à oráculo, mas o fato é que, se achei que a outra crítica publicada no Amálgama em grande parte tangenciava o assunto, esta aqui parece ter vindo de outra galáxia. Talvez o problema seja eu.
Uma, quem sabe, coisas são certas. Vimos filmes inteiramente diferentes e a crítica veio toda armada para detestar o filme mesmo antes do lançamento; na verdade, preparou-se desde que soube o nome do filme e da depressão, real ou imaginária, de von Trier.
Dos teus sete parágrafos, dedicaste seis às imagens e suas derivações e o último às teses. Chama a atenção. Sim, é um filme cheio de artifícios de imagens, que parecem ora saídas de um livro infantil, ora de um filme de Tarkovsky. Outra comprovação de má vontade é imaginar que uma dedicatória a Tarlosvky — quase uma declaração de vassalagem — signifique que von Trier queira alçar-se a um nível superior. Fico pasmo. Na verdade, acho que o dinamarquês quis proteger-se com a dedicatória. Se o final do filme é Andrei Rublev; a mata, Stalker; além de outras referências aqui e ali, melhor autoacusar-se, não achas?
Bom, sobre as cenas de sonho de um personagem louco — pois Ela era doida varrida, não te pareceu?, ou aqueles sapatos postos ao contrário caíram na conta dos “sonhos” ou da imaginação?: tais cenas devem ser analisadas à luz da realidade ou de uma verdade ficcional? Há algum compromisso científico em von Trier? Exigirás também substrato científico no Fausto de Goethe ou vais deixar passar batido por causa da poesia?
Sobre o psicologismo. Não sei se entendo o que é, mas penso que psicologismo seja algo que coordene a lógica dos acontecimentos: todo o maluco é e age assim e lá vou eu tratar todos da mesma forma. Bem, isto é tudo o que NÃO HÁ em Anticristo. A lógica toma um baile de cabo a rabo, o marido onipotente cada vez mais não sabe o que fazer e, como escreveste, o que interessa à psicanálise… Porra, estamos vendo um filme, não estamos recriando a Bíblia, nem manuais de comportamento. Foda-se a psicanálise! Penso que ela deva vir atrás das obras de arte, não dentro nem sobre as mesmas.
Outro ranço que me fica das duas críticas publicadas no Amálgama é o do politicamente correto de minha desesperança e desencanto. Vou ali na esquina me matar, OK?
Um grande abraço pleno de discordâncias.
Apenas para situar o problema das cores, Dançando no Escuro é um filme outonal: as cores assumem o tom de amarelo, que se torna princípio amarelo: mostrando no esmaecimento do tom o tempo que passa sem passar. Em artes visuais este efeito é acompanhado por muita melancolia, na pintura a melancolia é tão intensa que a felicidade é sempre ambivalente, ainda mai se estamos diante de uma tela figurativa. Mas no cinema o efeito não é tão complexo, porque o princípio amarelo é representado com maestria pelo Outono natural. Nas folhas, nos cabelos idosos, existe um princípio amarelo: um tempo que passa sem passar. Nos filmes minimalistas de Von Trier (cabe dizer, o Dogma 95 não é minimalista em imagem, mas hiperbólico em regras, mesmo que essas regras pareçam divertidas, o que fornece uma falsa aparência de mínimo, quando o que existe é um excesso), o trabalho com a cor se torna bastante superior. Não porque ele habita o território um pouco mais próximo do preto e do branco (que não sem ironia constitui a dramaturgia, enquanto cores da pele), e esse território seria um pouco mais simples, mas porque ele habita o território do preto e do branco, pensar nas casas pintadas no chão de Dogville, apenas com tracejado branco sobre o solo preto, e isso o obriga a colocar as coisas em termos de composição. Ou ainda Manderley, onde o solo branco é inscrito pelo tracejado preto.
A lembrança do mapa dos Estados Unidos todo branco no fundo e tracejado em preto é bastante significativa da maturidade pictórica do diretor. Entre Dogville e Manderley, por serem filmes de minimalismo, existe um jogo pictórico entre a prevalência do preto e a inscrição do branco, e por outro lado, a disponibilidade do branco e a inscrição do preto. Este minimalismo, como qualquer minimalismo, torna a elementaridade das paixões humanas uma questão contrastante.
O Anticristo possui muitos elementos para ser um bom filme, mas não é. Se interpretássemos de um modo mais processual, poderíamos dizer que se constitui na oportunidade de retornar ao tema do outono, acrescido à quebra das elementaridades morais, mas não um outono espontâneo, e sim um outono provocado, acrescido do problema do Mal. A maturidade pictórica dos filmes anteriores é trocada por uma espécie de lambança computacional que torna a imagem do filme devedora de alguns filmes adolescentes. Alguns poderiam retorquir que Von Trier passa agora a fazer parte de uma forte genealogia de diretores que filmam nas dimensões do sonho, como Tarkovsky, o que seria comprovado por uma forte mitologia que envolve o filme, como a depressão de Von Trier e a dedicatória a Tarkovsky. Mas ainda que ele tenha se tornado um membro dessa genealogia de diretores que mobilizam o onírico, deve ser dito que Von Trier ainda não conseguiu se colocar à altura dos pares.
No que concerne ao Anticristo, nas circunstâncias da obra de Von Trier algumas indagações sobre a natureza pictórica do sonho são cabíveis. Porque muito embora ele tenha muita experiência com a natureza pictórica da experiência, talvez lhe falte alguma ardilosidade no que concerne ao trabalho pictórico com os sonhos. De nenhuma forma podemos naturalizar os sonhos, ou fazer neles alguma mitologia. Aquilo que se pode chamar de um trabalho pictórico com sonhos concerne apenas ao que se fez: em literatura, poesia etc. Esta natureza pictórica do sonho que defendemos pode mudar e se tornar algo mais próxima, ou até mesmo idêntica, ao que Von Trier defende, mas com largo prejuízo ao gosto. Por isso, cabe dizer, que os sonhos não são penumbra. Nesse sentido, representar a realidade-onírica como penumbra é uma espécie de deturpação justificável na comédia. O que, salvo melhor juízo, não é o caso. A representação do sonho na realidade “com brumas” é ainda mais risível.
Mas por que ele faz isso, ele que é um grande diretor? Porque não se deu o trabalho de perceber que a cor não é o que distingue os dois regimes (a realidade do sonho ou o sonho da vigília), mas o que os torna contíguos. Ele assim o faz para proteger as imagens da dor — nada mais habitável, no sentido vegetativo, do que uma realidade sem força onírica. Não é facultado aos grandes artistas hesitação diante da dor. Aparentemente, ao dar “amostras” do grotesco (ejaculação com sangue, mutilações e intervenções no corpo) ele nos poupa do caminho mais cruel. Este caminho mais cruel (entretanto, artisticamente superior) se dá no reconhecimento que a composição do absurdo não está no sonho, mas está no mundo, com relação ao qual o sonho está em relação de contigüidade. No mundo estão os pesadelos, e deles os sonhos participam.
No que concerne às teses, nada mais artisticamente pobre do que a saída pelo psicologismo. Uma forma de relativismo acerca do conhecimento das experiências humanas, em virtude da intensa presença da singularidade, em cuja forma mais cruel acaba por lidar com a natureza humana apenas como uma entidade regular. Von Trier, a pretexto de brincar com as teses da psicanálise e das psicologias do comportamento, colocou quase tudo na conta do psicologismo. (1) A onipotência do marido acerca das agruras da esposa. (2) O relativismo da esposa acerca das distinções entre bem e mal. (3) A forte carga de imprevisibilidade acerca dos rumos desastrosos na resposta a situações de sofrimento. Pois, pode ser dito, o que menos interessa à psicanálise é o psicologismo: (1) situações de onipotência acabam mal. (2) O relativismo acerca das distinções entre bem e mal também acabam mal. (3) Situações de sofrimento são previsíveis no que concerne aos seus rumos desastrosos. Não há motivo para se relativizar qualquer desses temas.
Responde Milton Ribeiro (2–12–2009 10:17 am)
César, meu amigo,
por favor, não pense que me tenho em alta conta e que tenha alguma pretensão à oráculo, mas o fato é que, se achei que a outra crítica publicada no Amálgama em grande parte tangenciava o assunto, esta aqui parece ter vindo de outra galáxia. Talvez o problema seja eu.
Uma, quem sabe, coisas são certas. Vimos filmes inteiramente diferentes e a crítica veio toda armada para detestar o filme mesmo antes do lançamento; na verdade, preparou-se desde que soube o nome do filme e da depressão, real ou imaginária, de von Trier.
Dos teus sete parágrafos, dedicaste seis às imagens e suas derivações e o último às teses. Chama a atenção. Sim, é um filme cheio de artifícios de imagens, que parecem ora saídas de um livro infantil, ora de um filme de Tarkovsky. Outra comprovação de má vontade é imaginar que uma dedicatória a Tarlosvky — quase uma declaração de vassalagem — signifique que von Trier queira alçar-se a um nível superior. Fico pasmo. Na verdade, acho que o dinamarquês quis proteger-se com a dedicatória. Se o final do filme é Andrei Rublev; a mata, Stalker; além de outras referências aqui e ali, melhor autoacusar-se, não achas?
Bom, sobre as cenas de sonho de um personagem louco — pois Ela era doida varrida, não te pareceu?, ou aqueles sapatos postos ao contrário caíram na conta dos “sonhos” ou da imaginação?: tais cenas devem ser analisadas à luz da realidade ou de uma verdade ficcional? Há algum compromisso científico em von Trier? Exigirás também substrato científico no Fausto de Goethe ou vais deixar passar batido por causa da poesia?
Sobre o psicologismo. Não sei se entendo o que é, mas penso que psicologismo seja algo que coordene a lógica dos acontecimentos: todo o maluco é e age assim e lá vou eu tratar todos da mesma forma. Bem, isto é tudo o que NÃO HÁ em Anticristo. A lógica toma um baile de cabo a rabo, o marido onipotente cada vez mais não sabe o que fazer e, como escreveste, o que interessa à psicanálise… Porra, estamos vendo um filme, não estamos recriando a Bíblia, nem manuais de comportamento. Foda-se a psicanálise! Penso que ela deva vir atrás das obras de arte, não dentro nem sobre as mesmas.
Outro ranço que me fica das duas críticas publicadas no Amálgama é o do politicamente correto de minha desesperança e desencanto. Vou ali na esquina me matar, OK?
Um grande abraço pleno de discordâncias.
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